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Você Veio?

Outubro 31, 2019

Fernando Zocca

 

 

simca.jpg

 

Descendo a ladeira íngreme, mal conseguindo manter a própria carcaça que já se aproximava da oitava década de vida, Zé Laburka parou defronte ao barracão desocupado e percebendo a porta de aço entreaberta arriscou entrar.

- Deve ser aqui – murmurou ele ao curvar-se para passar por aquele portão.

- Quem está aí? – perguntou, com rispidez, uma voz feminina.

- Sou eu, bem – devolveu Laburka.

- Você veio, Zé?

- Vim Cristina – garantiu Laburka adentrando no salão escuro amplo e acomodando-se num dos bancos ainda vazios.

O casal Donizete Pimenta e Dani Arruela abriu bem devagar o portão de ferro, pintado com tinta marrom já bem velha, e lentamente, trocando olhares de cumplicidade iniciaram a caminhada pela calçada.

- Se você não fosse burro não teria vendido o Simca Chambord. Era velhinho, mas pelo menos a gente não andava a pé pela rua – criticou Arruela logo que sentiu as primeiras impressões da caminhada.

- E o que adianta ter um carro e não ter a gasolina pra botar nele? – defendeu-se Donizete.

Sem mais nenhuma palavra o casal trafegou pelas ruas do bairro indo parar defronte ao barracão sinistro. Abaixaram-se e entraram pela porta entreaberta.

- Quem está aí?  - quis saber o vozeirão feminino.

- Aqui quem fala é o Donizete Pimenta.

- E aqui é a Arruela. Dani Arruela.

- Você veio, Donizete?

- Vim Cristina.

- Você veio Arruela?

- Vim Cristina.

- Não reparem na ausência de luz. Sentem-se e aquietem-se – orientou o vozeirão.

Delsinho espiroqueta, com um lenço colorido na cabeça, tamancos de madeira nos pés, rebolando mais do que criança brincando com bambolê, ao chegar defronte o barracão escuro, bateu palmas e foi entrando.

- Quem está aí? – quis saber o vozeirão feminino autoritário.

- Aqui, bem, é o Delsinho. Sempre, forever, Espiroqueta pros amigos.

- Você veio Delsinho?

- Vim Cristina.

- Achegue-se e descanse o traseiro largo num dos nossos bancos.

Defronte ao barracão Luisa Fernanda, Célio Justinho, Hein Hiquedemorais, Lurdes Ton Inn, chegaram numa caminhonete Chevrolet D 20 Branca, quase nova.

Desceram, e defronte ao portão do barracão funesto, em fila indiana, começaram a entrar.

- Quem está aí? – perguntou a voz feminina grave e poderosa.

- Aqui somos a gente, querida – respondeu Ton Inn tremulamente.

- A gente quem? - Insistiu a voz com a força de uma coronel da polícia.

- Aqui é Luisa Fernanda, dona senhora.

- Você veio Luisa?

- Vim Cristina.

- Aqui é Célio Justinho, dona comandante.

- Você veio Célio?

- Vim Cristina.

- E aqui somos a gente mesmo, dona senhora comandante. Isto é, Lurdes Ton Inn e Hein Hiquedemorais.

- Você veio Lurdes?

- Vim Cristina.

- Você veio Hein Hique?

- Vim Cristina.

A vovó Bim Latem (que fora chefe de gabinete do prefeito – quase imperador – Jarbas o caquético testudo) desceu do seu Chevrolet Onix zero kilometro e, sem nenhuma dificuldade, transpôs a porta de aço daquele barracão tenebroso.

- Quem está aí? – inquiriu a voz daquele poder.

- Aqui, excelentíssima e ilustríssima senhora, com o devido respeito, data vênia, é a Bim Latem, vossa serva para sempre.

- Você veio Bim Latem?

- Vim Cristina.

- Bom, com todos aqui presentes declaro aberta a sessão e iniciados os trabalhos, passaremos a discutir os assuntos de interesse de os envolvidos. O nosso objetivo hoje é definir a estratégia que nos livre desse sujeito ruim, odiado por todos os que desejam a manutenção das coisas nesse estado em que estão: ou seja, no tempo em que queimaram a zagaia de pau, do onça, dos barquinhos de tábuas e das aprontadas feitas com as crianças ingênuas escolhidas para receberem todas as cargas de ódio contidas contra os pais desses bodezinhos trouxas – começou Cristina com o seu discurso.

- Muito bem, senta a pua! – aplaudiu a vovô Bim Latem enquanto guardava a chave do Onix na bolsa pequena que trazia a tiracolo.

- Esse camarada, que se julga muito esperto, pretende mudar os costumes dessa nossa gente tão amada, querida, ilustrada e de bem com a vida. Por que, pergunta-se, por que haveriam de hostilizar um menino em decorrência de suas constantes incursões na mata, nas proximidades da sua casa, se sabiam, com antecedência, que a inspiração para tal conduta vinha, embora inconscientemente, das histórias (lidas na cozinha da vizinha) dos Bandeirantes desbravadores dos sertões e territórios, que fariam, no futuro, partes do Brasil? Qual a razão, o sentido, da ação praticada pelo velhote asqueroso, que quando sentados ambos, o velhote, e o menino, respectivamente tio e sobrinho, numa sala, ao redor duma mesa hexagonal, cuja forma assemelhava-se aos favos das abelhas, defronte a um receptor primitivo de televisão, que ao segurar firmemente o braço esquerdo do tontinho, o chacoalhasse violentamente dizendo com toda ênfase e raiva: “você vai ficar louco!” se não fosse para, única e exclusivamente, descontar na criança indefesa, os ódios contra o pai do tal piá?

- Nossa como ela fala bonito – comentou Gelino Embrulhano que se esgueirando entre os bancos e o pessoal acomodado, acabara de chegar.

- Fecha o beiço, ô inoportuno! – esbravejou Hein Hique secando, com o dorso da mão esquerda, o filete de saliva que lhe escorria pelo canto direito da boca.

- Pois por que a tal praga, do tal tio, haveria de se concretizar se não fosse o verdadeiro causador dos dissabores daquele tiozão covarde, o pai do meninote? – continuou Cristina – sim, meus amigos e seguidores, por que cargas d’água haveriam de urdir armadilhas usando crianças menores para comprometer o menino, se não fosse por ódio contra o pai dele, hã, hã, hã?

- Arregaça o canalha! – exclamou Zé Laburka cuspindo nas palmas das mãos, esfregando-as em seguida.

- Pois olha que vou lhe dizer uma coisa – arriscou Delsinho Espiroqueta interrompendo a palestrante – esse camarada é tão chato que um dia quando, bem de manhazinha, eu lavava o rosto na pia do banheiro e tendo antes tirado a dentadura, ouvi toques insistentes na campainha da porta e, ao mesmo tempo, os clamores do telefone inclemente. Eu fiquei tão assustado, desesperado, que não sabia a quem atender primeiro. Na pressa, ao sair correndo, ao invés de devolver meus dentinhos à boca, coloquei-os no sovaco esquerdo. E depois, tendo já corrido à porta da frente e percebendo que se tratava dum trote, ao procurar pela dita cuja, não me lembrava onde a pusera. Foi o Zé Laburka, meu querido, que ao notar um volume estranho debaixo do meu braço apontou o esconderijo.

- Bom, minha gente... Continuemos – prosseguiu a Cristina - O nosso propósito é de lançar campanhas difamatórias contra o tal. Falaremos mal dele, faremos incansavelmente a sua caveira, embaçaremos os seus cotidianos, tornaremos baço, muito baço, o seu viver. Nem duvidem. Todos na prefeitura, no mercado, nas lojas, no fórum, nas escolas, nos teatros, nos bares e em todos os lugares onde as pessoas costumam frequentar saberão que esse sujeito não presta. Temos folhetos explicativos que devem ser retirados na saída. Dessa forma, depois de quase 60 minutos, dou por encerrada essa sessão.

Da platéia soaram aplausos demorados.  Na saída quando todos tomavam os seus rumos, num Galaxie 1969, passou lentamente diante deles, o doutor Carneiro.

Também conduzindo lentamente o seu Hunday HD 20, surgiu defronte o barracão, o doutor João Carcanhá Di Grillis.

Quando Cristina, a última a se retirar, entrava no seu Voyage vintage, apareceu-lhe pela frente, caminhando bem devagar, manipulando o celular, que mal podia ver por causa das lentes grossas, dos óculos de sol, usados naquela noite, o inesquecível perseguido e odiado Van Grogue.

- Te cuida neguinho. Te cuida que tua chapa está esquentando. Quando te pegarem dificilmente sairás do inferno – advertiu a palestrante.

   

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