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Informação e entretenimento. Colabore com a manutenção do Blog doando para a conta 0014675-0 Agência 3008. Caixa Econômica Federal.

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A goiabeira

Julho 19, 2018

Fernando Zocca

 

 

goiabeira.jpg

 

Antes de comprar a moto eu ia sempre a pé ao Parque do Piracicamirim onde corria 5 km por dia. O percurso, de mais ou menos 20 minutos, tinha a vantagem de proporcionar o aumento da temperatura do corpo, deixando-o em condições propícias ao exercício mais extenuante.

Eu não tinha um horário específico definido. Às vezes saia antes do nascer do sol, outras depois das 10 da manhã, e não foram raras as ocasiões em que trotei após as sete da noite.

Uma vez, quando caminhava pela Av. Alberto Vollet Sachs, em direção ao Parque, fui abordado por um camarada que estudou comigo no Jerônimo Gallo, em meados dos anos de 1960.

- Eh, Zocca hein? Você agora é “sex” – me disse um vozeirão, às minhas costas, depois que atravessei a Rua João Botene.

Ao olhar pra trás reconheci a figura: era o Kidney, um dos colegas que, sentado numa das carteiras, no meio da sala, não deixava de admirar abestalhado, embasbacadíssimo, em voz alta, a belezura da professora de matemática.

- Sex, sim. Sexagenário – completei depois de cumprimentar o camarada que há mais 50 anos não via.

Passada a euforia inicial e já caminhando juntos, a conversação fluiu em torno da política de Brasília, de Piracicaba, da ladroeira crônica debilitante; falamos sobre o futebol e se o Brasil teria alguma chance na copa do mundo que aconteceria em Moscou.

Caminhamos até o portão do Parque e lá o reaparecido foi falando:

- Você sabe que eu aproveito esse fato da lei proporcionar passagem gratuita nos ônibus intermunicipais para as pessoas idosas.   Num domingo de manhã me deu na cachola de viajar pra São Paulo, na faixa.

Fui até a rodoviária e, com uma sorte tremenda, consegui a passagem. Depois do embarque sentei-me na poltrona reservada aos velhotes caronas. Achei que viajaria confortavelmente. Mas passados uns 10 ou 15 minutos, antes do início da viajem, ao meu lado, sentou-se uma senhora bem gorda. Balofa mesmo.

Ela arfava, suava e se abanava nervosamente. Senti que eu não ficaria por muito tempo ali. Depois que o ônibus iniciou o trajeto, olhei pras outras poltronas de trás. Não estavam todas ocupadas. Pensei que a empresa não se importaria se eu me deslocasse até uma delas, ali pelas imediações do meio do veículo.

Sentei-me. E qual não foi a minha surpresa quando, menos esperava, acomodou-se ao meu lado uma moça bem bonitinha.

Aos sacolejos da condução a jovenzinha começou a falar comigo. Eu estranhei muito. Primeiro porque havia outras poltronas desocupadas ao longo do corredor. Segundo pelo fato de não ser nada comum moças iniciarem conversação com pessoas desconhecidas.

A mocinha principiou a contar a sua história:

Meu pai era um sujeito muito rude. Um bronco. Não sabia ler ou escrever. Mas nem por isso deixou de se empregar na empresa de estrada de ferro. Ele era o responsável por alimentar a caldeira. Isto é, naquele tempo, os trens eram movidos a vapor. E pra ter o tal do vapor, era necessário aquecer a água. O aquecimento acontecia com as chamas da queima das toras de eucalipto.

Alem de ser bem burro, meu pai, barrigudíssimo, era cachaceiro. Não saia dos bares da redondeza donde a gente morava. Nos botecos ele conheceu um sujeito manquitola que catava papelão, jornais e revistas velhos, garrafas vazias, e um mundão de outras coisas, que depois vendia pros ferros-velhos.

Numa mudança de vida esse colega do meu pai, ao invés de vender as coisas catadas, passou a expor principalmente as revistas e livros, num cômodo da sua casa.

Bom, pra encurtar a conversa, o velhote deu de presente pro meu pai uns livrinhos que falavam sobre os Bandeirantes e outras historiazinhas. Lembra daqueles caras que desbravaram os sertões do Brasil no século XVI, tipo Borba Gato, Anhanguera e outros? Então...

A gente tinha um vizinho bem lazarento que, usando um pedacinho de galho da mangueira, pra raspar as bordas do buraco do muro, que separava os dois quintais, aumentou a quantidade de pó de reboco ali existente.

Eu, minhas irmãs e irmão, quando estávamos no quintal, ouvimos o moleque chamar a gente. A mais bestinha, botou o olho no furo do muro. Pronto. Foi o suficiente pro morfético assoprar aquela poeira toda no olho esquerdo dela.

Esse foi o primeiro contato com aquele vizinho. Depois da correria, do estardalhaço do acontecido, meu pai prometeu se vingar do “mardito”.

Bom, passado muito tempo, numa tarde, quando as lembranças da ocorrência pareciam ter se esmaecido convidamos o menino pra vir à nossa casa. A gente estava na cozinha. Minha mãe trabalhava na faxina dos quartos. Sentados à mesa, colocamos os livrinhos e as revistinhas, (ganhos por meu pai, do pinguço perneta), na frente do “xarope”, que dizia saber ler.

E não é que o sujeitinho leu as historinhas pra gente, impressionando principalmente a mim, a mais nova, e provocando um ciúme doentio na mais velha?

Bom passado um tempão, quando eu e minha irmã, apanhávamos goiaba, no alto da goiabeira do quintal, sofri uma queda, batendo o queixo; quase decepei a língua que ficou milagrosamente presa, à cavidade oral, por um fio. Esse fato, mais outros, foram decisivos pra que saíssemos daquela casa. Mudamos para uma vila. Mas o tal do vizinho, um encosto em nossas vidas, vinha muito ao nosso lar.

Meu pai tinha o firme propósito de vingar-se daquele chato. Muita coisa contribuiu para a felicidade paterna. O tal ficou doente.

Mas também não tivemos muita sorte. Logo em seguida meus pais se separaram. Eu estava noiva de um comerciante, dono dum posto de gasolina. Infelizmente não nos casamos; morri aos 19 anos, num acidente de carro numa terça-feira de carnaval.

- Eu paro por aqui, seu Kidney. Hoje acho que a peruca ficou bem na minha cabeça depois que me puseram naquele caixão branco. Que o senhor tenha uma boa viagem até São Paulo. Estou muito bem. Se puder dê lembranças pro meu pessoal.

Kidney parou de falar. Olhávamos um pro outro ali na entrada do Parque.

 

Eu já me sentia bastante cansado de tanta conversa. Mas Kidney afirmando estar com o peso bem abaixo do aconselhado, nas tabelas dos especialistas, antes mesmo que eu o convidasse a entrar, se despediu com um sorriso bonito e acenos inesquecíveis.

 

 

 

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